Minas na vanguarda arqueológica




OS SÍTIOS ARQUEOLÓGICOS na região de Lagoa Santa vêm sendo escavados há três anos e podem resultar na melhor coleção de esqueletos humanos antigos das Américas

Jáder Rezende
Repórter

A descoberta recente de 14 sepultamentos realizados há cerca de 8.500 anos, na região de Lagoa Santa, na Grande Belo Horizonte, coloca o Brasil à frente dos países desenvolvidos no campo da Arqueologia. O achado ajudará os cientistas brasileiros a definir mais claramente nossas origens, além de apontar, com maior precisão, como e quando se deu a ocupação da América.
Somados aos quatro esqueletos encontrados na Lapa das Boleiras, há dois anos, em Matozinhos, município vizinho a Lagoa Santa e distante 42 quilômetros de Belo Horizonte, o Brasil conta agora com 18 ossadas completas para análise.
“Dessa vez a bola está com a gente. Pela primeira vez na história da Arqueologia e da Antropologia brasileiras, temos o fossil power (poder do fóssil). Isso me emociona muito. Agora, pela primeira vez, poderemos fazer estudos de vanguarda sobre a origem do homem na América", comemora o especialista em Antropologia Evolutiva, Walter Neves.
Para se ter uma idéia da importância da descoberta, observa ele, os cientistas europeus e norte-americanos detêm know-how na área de pesquisas sobre a evolução humana, mas não possuem material suficiente para colocar em prática seus conhecimentos técnicos. “Os norte-americanos, por exemplo, contam com apenas meia dúzia de esqueletos humanos com mais de 8.000 anos para realizarem suas pesquisas", afirma.
Doutor em Ciências pela Universidade de São Paulo (USP), Walter Neves, coordena o laboratório de Estudos Evolutivos Humanos do Departamento de Biologia do Instituto de Biociências da USP e suas pesquisas de campo, que vêm sendo realizadas há cerca de três anos na região de Lagoa Santa, são patrocinadas pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
As pesquisas de Walter Neves têm como objetivo montar o complexo quebra-cabeças deixado pela passagem dos primeiros seres humanos na região de Lagoa Santa, enumerando fatores que vão do clima local à morfologia craniana desses desbravadores, além de análise da fauna com a qual conviveram. A Fapesp garantiu US$ 400 mil para as pesquisas até junho de 2004, mas há grande possibilidade do apoio ser estendido pelos próximos anos.
As ossadas recém-descobertas foram localizadas a apenas 20 centímetros do nível do solo, numa área de 60 metros quadrados, próximas à caverna Lapa do Santo, de formação calcária, também em Matozinhos. “Sabíamos da existência desse sítio e também das atividades funerárias que eram promovidas no local. Escavações realizadas no ano passado revelaram dois sepultamentos humanos", lembra Walter Neves.
Entre os 14 sepultamentos revelados na Lapa do Santo, 11 são de crianças. Para o antropólogo, a descoberta comprova que o sítio foi usado intensivamente como cemitério por paleoíndios, como são conhecidos os índios pré-históricos. “Isso nos permitirá, portanto, à medida em que as escavações avançarem, constituir a melhor coleção de esqueletos humanos antigos das Américas", prevê.
O sítio arqueológico da região onde foi detectado maior maior volume de sepultamentos humanos é o de Santana do Riacho, em Santa Luzia. Escavado pelo professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), André Prous, no final dos anos 70, lá foram localizados 40 indivíduos. Mas a caverna de Santana do Riacho é formada por quartzito, o que compromete o nível de preservação das peças.
Entre as ossadas lá encontradas, apenas seis tinham crânios inteiros, que puderam ser estudados. Como a Lapa do Santo é formada por calcário, é bem maior a probabilidade dela guardar ossadas completas e mais bem conservadas.

Sepultamento secundário se perpetua através dos milênios

Nos rituais funerários realizados há oito milênios, os corpos eram enterrados diretamente no chão, em posição fetal, geralmente de lado. Freqüentemente, as sepulturas eram demarcadas por pedras. A maioria dos 14 sepultamentos recém-descobertos na zona rural de Matozinhos, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, possuem essas características, mas apenas estudos detalhados das ossadas poderão dar informações mais precisas.
“Muitos grupos tribais primitivos até hoje sepultam seus mortos em duas etapas: depois de enterrar alguns corpos diretamente na terra, os ossos são retirados e recebem algum tipo de tratamento ritual, para depois serem enterrados novamente, constituindo assim o sepultamento secundário", explica Walter Neves.
O cientista lembra ainda que, até o episódio de Boleiras, não havia sido comprovada a realização de sepultamento secundário ritualizado entre paleoíndios na América. Segundo ele, um dos túmulos descobertos há cerca de um ano naquele sítio fornece a primeira evidência de que os paleoíndios em Lagoa Santa praticavam esse tipo de atividade funerária.
“Está claro agora que a remoção de partes do corpo para serem transformadas em instrumentos funcionais e, eventualmente, adornos, aconteceu durante alguns sepultamentos e que os paleoíndios de Lagoa Santa tinham um sistema funerário muito elaborado", afirma Walter Neves, observando que já está sendo investigada a hipótese de que, na Lapa do Santo, tenha ocorrido o mesmo modelo de ritual.
Para o antropólogo, não restam dúvidas de que serão encontrados outros esqueletos paleoíndios em perfeito estado de conservação na Lapa do Santo. As escavações, afirma, prosseguem no próximo ano, com possibilidade das buscas chegarem a três metros de profundidade. Para os cientistas, quanto mais esqueletos forem descobertos, mais cedo serão esclarecidas dúvidas sobre como, de onde e quando os primeiros humanos chegaram ao Novo Mundo.

Julho é mês de caça a tesouros

As pesquisas do professor Walter Neves de sua equipe, que levaram ao descobrimento da preguiça de 30 mil anos e de um dos mais antigos cemitérios das Américas, foram iniciadas em meados do ano passado, em dois sítios distintos e muito bem preservados: um arqueológico (com registros de atividade humana intensa) e um paleontológico (com acúmulo de fósseis de fauna, até o momento sem evidência de ação humana). No Brasil, os grandes trabalhos de campo da Arqueologia acontecem em julho, por coincidir com as férias escolares e com o período de estiagem. Ao longo do ano, são feitas apenas pequenas intervenções nesses sítios.
Os dois sítios explorados, Lapa do Santo (arqueológico) e Gruta Cuvieri (paleontológica) estão localizados na Região Norte de Lagoa Santa, nos limites do município de Matozinhos, na RMBH. Dessa vez, Walter Neves reuniu um grupo recorde. Cerca de 50 pessoas - entre profissionais e alunos, da USP, UFMG, Faculdade de Ciências Humanas de Pedro Leopoldo, dois alunos de segundo grau de Matozinhos, técnicos em Espeleologia - integram sua equipe. Juntaram-se a ela outros dois estudantes estrangeiros, uma da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e outro do Museu de História Natural de Paris.
As incursões pela Gruta Cuvieri, lembra Walter Neves, vêm sendo marcadas por histórias curiosas. No final dos anos 70, início dos anos 80, por exemplo, o professor André Prous, arqueólogo da UFMG, em rápida prospecção no local, avistou um abismo e, na superfície, uma ossada de um grande animal pré-histórico. Era uma preguiça terrícola, da espécie Catonyx cuvieri, do tamanho aproximado de uma vaca. A ossada foi levada para o Museu de História Natural da UFMG.
Até o ano passado, observa Walter Neves, a teoria de Peter Lund, de que os primeiros habitantes da região conviviam com animais da megafauna, não havia sido testada objetivamente. “O que se sabe, há muito tempo, é que o homem está em Lagoa Santa, certamente desde 11 mil anos, com possibilidade de chegar a 12 mil anos. A Luzia viveu por volta de 11.200 anos no passado, com alguma probabilidade de, no futuro, essa projeção ser estendida para 12 mil anos", observa.

Escolas receberão mapa arqueológico

Todas as escolas de Ensino Fundamental e Médio, além de bibliotecas e casas de cultura espalhadas pelos oito municípios que integram a área de preservação ambiental de Lagoa Santa receberão, até o final do ano, um mapa arqueológico ricamente ilustrado, mostrando a localização dos sítios arqueológicos e as principais descobertas desde a chegada à região do naturalista dinamarquês Peter Lund - pioneiro nos estudos da História Natural da região.
O mapa traz uma síntese dos conhecimentos arqueológicos e paleoantropológicos de uma das regiões mais importantes - nesses dois aspectos - do Continente Americano. As três mil cópias, assim como a confecção do trabalho, foram patrocinadas pela USP, Fapesp, Ibama e duas empresas que exploram cimento na região. O mapa explica, de forma didática, detalhes da região arqueológica de Lagoa Santa, que abrange os municípios de Pedro Leopoldo, Matozinhos, Prudente de Morais, Vespasiano, Lagoa Santa, Funilândia e Confins, todos na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
O levantamento mostra, ainda, que os primeiros grupos humanos chegaram,à região no final do período Pleistoceno (entre 11.000 e 12.000 anos no passado), mas, até o momento, apenas o esqueleto de Luzia, exumado no abrigo de Lapa Vermelha, indica a presença do homem na região há mais de 11 mil anos. Até agora, a ossada de Luzia é considerada a mais antiga da América.
Além de pontuar dezenas de sítios arqueológicos da região, o mapa traz ilustrações do crânio de Luzia e de sua cabeça reconstituída. Mostra ainda, através de ilustrações, exemplos de formas de vasilhas de cerâmica da região, de pontas de lanças e pinturas rupestres encontradas em cavernas, feitas há cerca de 7.000 anos pelos índios pré-históricos. “O mapa é uma ótima fonte de pesquisas para professores e alunos da região", diz Walter Neves. “Esperamos, com essa iniciativa, contribuir na valorização e proteção desses registros de nossa Pré-História", afirma.

Modelo Clóvis superado

Durante mais de 60 anos, cientistas defenderam que o modelo de povoamento da América foi implementado por tribos originárias da Sibéria, os mongolóides, considerados os ancestrais de todos os ameríndios atuais, que teriam deixados vestígios de uma cultura batizada com o nome de Clóvis - nome de um povoado no Novo México, nos EUA, onde, em 1932, foram descobertos artefatos construídos por essa cultura.
Quando o antropólogo Walter Neves iniciou suas pesquisas, no início dos anos 90, o modelo Clóvis ainda era visto pela comunidade científica internacional como uma barreira inabalável. Mas, para o pesquisador, “um modelo monótono do ponto de vista genético".
Walter Neves aponta como fator crucial para se definir a ocupação da América o estudo da morfologia craniana dos paleoíndios. “Quando comparamos a morfologia craniana desses esqueletos com o banco de dados, eles se parecem muito mais com australianos e africanos do que com as populações siberianas e as populações indígenas atuais", apregoa. Luzia, segundo ele, é um exemplo dessa constatação.
Desde que foi descoberto, o crânio de Luzia vem sendo utilizado para comprovar a teoria de que os primeiros humanos que povoaram o Novo Mundo eram não-mongolóides, e que esse povoamento ocorreu mais cedo do que se imagina, entre 13 mil e 14 mil anos atrás.
A comunidade científica sempre acreditou que os mongolóides - ancestrais do índios atuais - teriam sido os primeiros a chegar à América, há cerca de 11.500 anos. As populações não-mongolóides exibiam crânio comprido, faces projetadas e estreitas, feições semelhantes às dos africanos e aborígenes australianos. Os mongolóides, por sua vez, tinham crânio muito arredondado e cara achatada.
Contudo, pesquisa recente publicada pela revista científica americana “Science" revê a datação de um importante sítio na Sibéria, situado bem no caminho da provável migração para as Américas dos antigos caçadores de mamute e outros grandes animais. Os sítios de Ushki, na península de Kamchatka, na Rússia, eram estimados em cerca de 17 mil anos de idade, os mais antigos na Sibéria.
O novo estudo, feito pelos americanos Ted Goebel e Michael Waters e pela russa Margarita Dikova, indica que a ocupação humana de Ushki só começou há 13 mil anos.

Luzia, ícone antropológico

Ícone das pesquisas do especialista em Antropologia Evolutiva, Walter Neves, desde 1998, Luzia - o esqueleto mais antigo das Américas - apresenta uma formação craniana muito diferente das populações indígenas atuais. Essa mesma formação foi verificada em outros 70 crânios paleoíndios sul-americanos.
A descoberta de Luzia, registra Walter Neves na última edição da revista “Scientific American Brasil", “foi fruto da insistência e da perseverança da Missão Arqueológica Franco-Brasileira, liderada por Annete Lamming Emperaire." Entre 1974 e 1976, essa missão francesa escavou a Lapa Vermelha IV, localizada no município de Pedro Leopoldo, Região Metropolitana de Belo Horizonte. Os primeiros fragmentos de Luzia foram encontrados a 12 metros de profundidade.
Os arqueólogos constataram que Luzia não havia sido enterrada formalmente. Para eles, o mais provável é que o corpo dela tenha sido apenas depositado no fundo da fenda da caverna. Como não foi enterrada, seus ossos, após o apodrecimento dos tecidos moles que os uniam, foram espalhados pela superfície inclinada no fundo da caverna.
Como os ossos de Luzia não conservaram colágeno (substância que constitui as fibras do tecido conjuntivo), o que permitiria verificar o tempo exato em que a ossada foi depositada no local, sua idade foi estimada de acordo com a posição estratigráfica do plano inclinado no qual se encontravam.
Entende-se por estratigrafia o estudo da seqüência, no tempo e no espaço, das rochas da crosta terrestre, assim como suas relações genéticas, suas condições passadas de formação e sua configuração em épocas passadas.
O tempo em que Luzia esteve enterrada foi determinado através de materiais encontrados acima e abaixo dos fragmentos de seus ossos. A idade sugerida oscila entre 11.000 e 11.500 anos no passado, embora pedaços de carvão encontrados em seu crânio indicam que ela estava debaixo da terra há mais de 12 mil anos.
Em 1999, uma reconstituição facial de Luzia, como já foi dito, provou que sua formação está mais próxima dos aborígenes africanos e australianos do que dos índios americanos atuais.

Achado atesta que paleoíndios e megafauna foram contemporâneos

Após 150 anos de especulações, foi comprovado que nossos ancestrais conviviam de fato com grandes mamíferos já extintos na região de Lagoa Santa. Essa teoria, levantada pelo naturalista francês Peter Lund (1808-1880), é confirmada agora pelo especialista em Antropologia Evolutiva, Walter Neves.
Além de ter evidências sobre a contemporaneidade entre homens e animais pré-históricos na região, ele descobriu, em suas últimas escavações, que exemplares da megafauna ocupavam a área há muito mais tempo. Essa constatação veio com a descoberta da ossada de uma preguiça gigante, depositada há cerca de 30 mil anos em uma caverna da zona rural de Matozinhos, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH).
O mamífero ficou preso em uma “armadilha natural" de uma gruta, e a conservação de sua ossada surpreendeu os pesquisadores, que se preparam para apresentar ao mundo a mais completa coleção do gênero do período Pleistoceno - época em que ocorreram glaciações, dilúvios e períodos interglaciários.
“Com isso, poderemos estudar a evolução dessa megafauna ao longo do tempo e ainda verificar quando o homem chegou aqui. Poderemos até mesmo responder a grande pergunta: por que o homem evitou se utilizar dessa megafauna, uma vez que ele conviveu com ela?", afirma Walter Neves.
Para se ter uma idéia da importância do achado, lembra o cientista, em nenhum sítio arqueológico escavado na região de Lagoa Santa nos últimos 150 anos houve registro de megafauna. “Os pré-históricos da região usavam ossos para fabricar instrumentos e adornos, mas nunca da megafauna", revela.
A datação da preguiça mais antiga que se tem notícia foi feita em um laboratório de Londres, através de análise de uma placa de calcita, retirada da Gruta Cuvieri. Uma ação pioneira marcou a descoberta. Pela primeira vez na história, foram aplicadas técnicas arqueológicas para escavar sítios paleontológicos.
“Para nós, arqueólogos, seres absolutamente obcecados pelo registro das descobertas in loco, ao aplicar essas técnicas, não só vamos ter os ossos como poderemos reconstituir muitas coisas dos últimos instantes de vida desses animais", comemora Walter Neves.
“Uma das coisas mais emocionantes é reconstituir um gesto de comportamento ocorrido há 30 mil anos e que estava ali, para a gente revelar com nossos pincéis", arremata.
Os restos mortais do bicho foram localizados, no ano passado, na Gruta Cuvieri, mas só agora constatou-se que são bem mais antigos do que se supunha. “Como na gruta não há dinâmica de água ou perturbação pós-deposicional, ou seja, o ambiente está muito protegido, não só conseguimos recuperar a ossada da preguiça, como desenhar em detalhes a maneira como ela caiu no chão", explica.
"Quando ela caiu no abismo, com as patas na vertical, as pernas fincaram num sedimento fofo. Deu para ver até a maneira como o pé dela se encaixou no buraco", diz. A ossada da preguiça, assim como a dos sepultamentos humanos, seguiram no final da semana passada para São Paulo, onde serão analisadas no Laboratório de Estudos Evolutivos Humanos da USP.
Walter Neves defende a permanência do material em Minas Gerais. Sugere os museus de História Natural da UFMG ou da PUC-Minas, mas a decisão final caberá ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

fonte : Jornal Hoje em Dia - 10 de agosto de 2003